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Quanto vale a memória de Santa Rosa?

“Todas as coisas exibem rostos (…); como formas expressivas, os objetos falam, mostram as configurações que assumem. Eles se anunciam, atestam sua presença: ‘Olhem, estamos aqui’. Essa exigência imaginativa de atenção indica um mundo almado”.

(James Hillman, in Cidade & Alma, ed. Studio Nobel,pgs. 14 e 15)

Dessas palavras se depreende que os objetos se dispõem para nossa imaginação ganhando projeção e vida, atraindo-nos. No entanto, importa reconhecer que essa súbita “iluminação” não depende apenas de suas formas estéticas, o que os torna belos ou valiosos, mas sim de uma apresentação sensorial organizada que anime suas imagens e afete nossa imaginação. É nesse momento que a “alma” desses objetos corresponde e une-se à nossa. Nessa hora, eles são sujeitos que se exibem e nos “falam” ao coração.

E em que outro local os objetos nos falam com maior propriedade e também algum afeto histórico sobre o passado da nossa cidade senão o museu municipal, com seu grande acervo de objetos, móveis, ferramentas, rádios e relógios antigos, moedas, armas, louças, porcelanas, livros, quadros, utensílios de cozinha, mobiliário de escritório, instrumentos musicais, indumentária masculina e feminina, entre muitas outras coisas?

É preciso também destacar o grande acervo documental, valioso e fundamental para pesquisas. Para não citar todos, ressaltamos alguns: 5.850 folhas de telegramas e fonogramas do período compreendido entre 1932 e 1954; 84.200 folhas de correspondências emitidas e recebidas no período compreendido entre 1932 e 2003; 50.000 folhas de jornais, entre eles: A Serra, O Grande Santa Rosa, Noroeste, todos do período compreendido entre 1933 e 2001; e, o mais surpreendente, mais de 20.000 fotografias retratando fatos, eventos, lugares, pessoas, costumes, tradições.

É um acervo rico, diverso, fundamental para a compreensão, fixação e também pesquisa dessa imensa memória de vida, imprescindível para permitir viagens subjetivas no tempo até aqueles dias em que nossos antepassados também caminhavam por essas ruas e avenidas, trabalhavam para manter suas famílias e construir seus patrimônios, conhecer os locais onde rezavam, realizavam negócios, legislavam, festejavam, as igrejas em que casaram, as escolas que fundaram e colocaram seus filhos. Através dele é possível conhecer mais sobre os embates políticos de que participaram, as empresas que criaram, a tecnologia de que dispunham, os carros que dirigiam, as roupas que usaram, os clubes e salões que freqüentaram, as viagens que fizeram. Em suma, todas as experiências de vida que passaram, cujos ecos e conseqüências chegam até nós no momento presente, influindo no progresso que desfrutamos, no conhecimento que dispomos, e na qualidade de vida em que vivemos. Em suma, esse imenso legado que nos deixaram.

O museu é um lugar definido por um forte “sentido de lugar”, expressão usada pelo cineasta alemão Win Wenders como algo “conduzido por uma história local, um lugar que “conta sua própria história, uma história que não poderia se passar em nenhum outro lugar.” Diz ele: “em seu próprio lugar esse sentido permite que você fique aterrado, ancorado, permite que você cresça e adquira conhecimentos e se sinta realmente em casa”. E, ressalta ainda: “é um local que fala do mundo que nos forma (…), uma história que vai sobreviver somente nas fotografias, nos documentos e nos objetos”. O cineasta, falando de pessoas que com ele trabalharam em um filme rodado na Austrália, em determinado momento diz assim: “eles precisam preservar o conhecimento do pedaço de terra pelo qual são responsáveis, e o transmitem ao futuro ‘cantando’ a história.” (in Pensar a Cultura, Série Fronteiras do Pensamento, Ed. Arquipélago Editorial Ltda., pgs. 52/68)

Diz ele ainda: “um sentido de lugar nos permite contar para os outros histórias que são baseadas na única coisa que vale a pena transmitir: conhecimento, experiências, emoções vividas, exposição à vida …”. Em suma, não seriam esses os mesmos elementos que alimentam a alma da nossa cidade e que, reunidos em uma mistura única e singular, requerem, como sinal de respeito, que essa memória seja cuidadosamente preservada?

Criado em 1997, reinaugurado em 2003 e reestruturado 2009, o museu municipal instalado na antiga estação férrea novamente clama por atenção. O prédio, construído na década de 40, enfrenta problemas de ordem estrutural que precisam ser atendidos à curto prazo, sob risco de vermos todo o acervo nele alocado ser destruído por um incêndio acidental ou proposital, ou ação criminosa e de vandalismo que não encontram barreiras que impeçam a invasão de suas instalações. Não existem dispositivos de segurança em seus limites espaciais e acessos, quais sejam, cercas que auxiliem no controle de acesso, assim como grades, fechaduras e trancas especiais em suas janelas e portas antigas, quiçá um moderno sistema de monitoramento e detecção de intrusão, e alarmes de furto ou roubo e de incêndio.

Em caso de incêndio, desconhecemos se nas imediações existem hidrantes ou reservatórios de água com tubulação de distribuição suficiente, bem como se interior do prédio existem extintores específicos (classe de materiais: papel, madeira, plástico, etc.) em quantidade necessária; ainda, se existem normas e procedimentos de organização, bem como um plano de emergência para o caso desse tipo de sinistro, tudo levando em conta as particularidades da edificação.

Uma visita ao seu interior revela o aparente desgaste do antigo sistema de fiação elétrica que se distribui pelas paredes e pelo forro em madeira que cobre a totalidade de suas instalações, com sério risco de curtos circuitos e suas prováveis conseqüências.

O prédio também não conta com a atuação de vigilante noturno, o que deixa o acervo totalmente desprotegido durante a noite, ressaltando que a construção fica bem no meio do grande parque da Praça 10 de Agosto, nas escuras imediações do mercado público, área deserta e não freqüentada nesse período.

Importa falar sobre esse assunto no momento em que o Poder Público está em vias de entregar à comunidade (nos próximos meses), devidamente finalizadas, as reformas e restaurações de outros 03 equipamentos culturais importantes, quais sejam: o prédio de Centro Cultural, em frente à Praça da Bandeira, prevista para acontecer no segundo semestre de 2020; das novas instalações da Biblioteca Municipal Olavo Bilac, prevista para acontecer em março de 2020, e do Centro Cívico, prevista para janeiro de 2020.

Importa falar porque estando os projetos referidos em fase de finalização, com recursos já alocados e destinados, permitem à administração pública voltar suas atenções ao Museu Municipal, principalmente nesse momento em que ele concorre na busca pelos olhares das pessoas e principalmente dos jovens, atraídos por incríveis e modernos aparatos tecnológicos que os conectam ao mundo inteiro e a seus milhares de museus.

Aqui não se está a fazer qualquer crítica negativa à administração municipal e à Secretaria de Cultura. Pelo contrário, se reconhece a especial atenção dada ao Patrimônio Cultural de Santa Rosa por parte do Poder Público, que encontrou formas de viabilizar recursos para os 03 projetos acima mencionados, que reabertos à visitação pública elevarão a cidade à condição de referência cultural regional, revigorando o setor para as próximas gerações.

Mas é preciso que, imbuído do mesmo espírito “anima mundi”, a administração municipal volte agora suas atenções ao museu municipal, a casa que conta daquilo que nos forma, nos particulariza e que, importante se diga, tem o poder de nos fazer especiais aos olhos dos visitantes que por aqui chegam?

Não está aqui a se perquerir por grandes obras com custos elevados, não é disso que se trata. Apenas se quer chamar a atenção para detalhes que, devidamente atendidos, tem o poder de evitar que prejuízos irrecuperáveis aconteçam.

Não podemos permitir que nosso patrimônio histórico cultural vá se dissolvendo aos poucos, que nossa identidade se enfraqueça por falta de atenção. O cuidado dispensado não seria um importante instrumento a ser usado pela administração municipal para transmitir à todos a noção que temos do nosso próprio valor?

O Museu, em suas modestas instalações, guarda importante acervo da história do município, organizado graças a doações de pessoas que reconhecem sua importância como guardião da memória de acontecimentos importantes que marcaram o desenvolvimento da “Grande Santa Rosa” e de seus habitantes. Esse acervo histórico permite contemplar, valorizar e, o mais importante, ressignificar momentos, movimentos, fatos e eventos aqui ocorridos, protagonizados por pessoas que nos antecederam, cidadãos comuns e personalidades da vida política, econômica, social e cultural.

Esses fatos históricos são disponibilizados ao público pelo acesso aos seis ambientes temáticos contendo móveis e objetos relativos a vários períodos, da chegada dos pioneiros à região até a década de 1950, além de sala arquivo contendo documentos de imigração, fotografias, impressos antigos – jornais diversos, revistas, livros históricos do município, mapas, cartas e correspondências emitidas e recebidas, entre outros.

Para melhor compreender a importância de se conhecer esse desenrolar da história local, vale reler o que nos diz a historiadora Teresa Christensen, em seu livro “SANTA ROSA – HISTÓRIAS E MEMÓRIAS”, edição 2008, pg 11: “A memória histórica não é alguma coisa que se completa ou termina; ela permanece (…); é diálogo sem fim entre o passado e o presente”.

Ainda: “considerando que há toda uma dinamicidade no passado e que suas conseqüências estão aí no tempo presente, é que se justifica, em grande medida, a necessidade de conhecê-lo para melhor entendimento das suas implicações no mundo em que vivemos”.
(“SANTA ROSA – HISTÓRIAS E MEMÓRIAS”, edição 2008, pg, 330)

Também: “(…) transmissão de uma geração para a outra, guardar para a posteridade a luta dos pioneiros, de homens e mulheres que num tempo distante aqui chegaram, começaram uma nova vida e escreveram os primeiros capítulos da história de Santa Rosa”. (…) “construção que nos identifica com o que somos, com o que permaneceu e com o que mudou”.
(“SANTA ROSA – HISTÓRIAS E MEMÓRIAS”, edição 2008, pg, 371)

De suas palavras se depreende que o maior desafio do museu municipal é garantir a transmissão dessas memórias transformadas em lições repletas de espírito comunitário: “É também um ato de fé no que diz respeito à ordem e ao movimento na história. Portanto, para termos uma história na qual possamos nos reconhecer como personagens, devemos ter uma memória que registre esse passado, unindo com o presente e permitindo projeções para o futuro. Todo esse movimento une-se através de lembranças, fios que juntam as contas de um colar, que se não estivessem ali, seriam apenas contas soltas, dispersas nas dobras do tempo”.
(“SANTA ROSA – HISTÓRIAS E MEMÓRIAS”, edição 2008, pg, 11)

A tradição mora no coração imaginativo da cidade. Para respeitá-la é preciso olhar de novo para o passado, respectare, mas dessa vez com o olho do coração. Esse respeito exige a reconstituição das falas do passado, de modo que elas falem novamente de qualidades (fundantes) que lá existiam, do porque existiam e eram valorizadas. E esse respeito levará ao novo interesse por elas.

A história da nossa cidade, da nossa formação social tem de ser constantemente irrigada, exaltada, porque ela tem essa força de coesão, essa capacidade de juntar vários elementos daquele que dizem ser nossos maiores valores, que são o espírito comunitário, a perseverança histórica, o modus operandi, as formas de funcionamento, o que deu certo.

Para ser valorizado pela população, com novas doações e maiores visitações, poderia o Poder Público garantir novos e maiores investimentos em infra-estrutura, segurança, materiais, novas tecnologias digitais (máquinas para digitalização e armazenamento de todo acervo textual, gráfico e fotográfico). Tudo isso possibilitará a adoção de novas estratégias de reconhecimento e, principalmente, o fortalecimento da função que talvez seja, hoje, a mais importante do museu: a pedagógica.

Nele os objetos perdem seu significado para ser tornarem significantes. Passam a ser usados para alcançar determinadas épocas do passado. A memória se molda neles, por ela são humanizados.

Em tempos de tecnologia da informação e seus infindáveis recursos, urge um maior entrosamento entre o museu e as escolas, com a participação ativa e interessada dos professores e seus alunos. Talvez seja no museu que as crianças nascidas nos últimos dez anos começam a ter as primeiras noções sobre o passado da cidade e sobre pessoas que aqui viveram. Por isso é muito importante que esse primeiro contato com a história seja feito (voltemos ao início do texto, seja animado, “almado”) de maneira prazerosa, instrutiva, preocupada com os fatos que estão sendo contados.

Ainda, não podemos esquecer de ressaltar a diversidade étnica que temos em nossa formação populacional, que talvez faça parte da história desses alunos, de suas famílias. No museu eles podem se reconhecer de forma mais abrangente dentro da sociedade em que vivem, e quem sabe se deparar com uma “outra” cidade que aos seus olhos passe a ser bem mais interessante. Isso tudo num processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização dessa herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens e propiciando a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural. (Maria de Lourdes Horta, 2003, p.6)

Fica a pergunta: pelas futuras gerações, o museu municipal não deveria ser tratado com todo o respeito que a “alma” de seu acervo histórico lhe empresta, recebendo maiores cuidados e investimentos em 2020? Quem sabe um aumento de suas instalações? Bom, isso já é assunto para outro momento.

“Essa história não pode acabar aqui”, diz Gilnei Bauken

Em 1997 não existia Museu em Santa Rosa, recomeça uma nova história um novo trabalho, um novo desafio. O Portal Plural entrevistou Gilnei Bauken de Oliveira, na época Secretário Municipal de Cultura, com formação acadêmica professor de história, teve autorização do então Prefeito Júlio Osório Brum de Oliveiran o vice-prefeito Antônio Ailton Torres de Paula para Fundação do Museu Municipal de Santa Rosa, então se iniciou a organização e coleta do acervo, com peças que ainda existiam do Museu Vicente Cardoso e o funcionamento no prédio da Estação Férrea do centro da cidade.

“Como primeiro passo foi designada a Professora Sandra Castilhos de Oliveira para coordenar e organizar os trabalhos com a supervisão do então Diretor de Cultura André Christensen Garcia e auxilio de Alba Maciel. De peça em peça, sem verba, com a colaboração da comunidade e historiadores se conseguiu ter o local com um pequeno acervo para visitação do público”, lembra Gilnei Bauken, que completa informando que na época não foi realizada solenidade de inauguração, pois isso era obrigação.

“Essa história não pode acabar aqui, o museu municipal precisa de cuidados, que seja realizado as mudanças e adequações necessárias, toda nossa história está documentada naquele local e não podemos perder isso”, finaliza Gilnei Bauken.

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