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Biblioteca para a vida: jovens leitores descobrem o poder e a graça dos clássicos

Franz Kafka (1883-1924), o grande escritor checo. O grande autor da língua alemã. Clássico. Difícil? Não. Ou não pela linguagem. “Criou-se a volta de Kafka um grande castelo, muralhas que dão a ele uma estatura meio sobre-humana. Mas temos que ter em mente que o seu texto é muito simples”, diz Luis S. Krausz, escritor, tradutor e professor de literatura hebraica e judaica da USP – e seu comentário valeu para ele, quando se viu, mais uma vez, diante de A Metamorfose, e vale para leitores. De qualquer idade.

“Kafka escreve num alemão que é o alemão do falatório. Uma língua fácil. Qualquer criança consegue ler um texto assim. É como ler um jornal. Não há nenhum tipo de exigência com relação ao leitor. Por isso mesmo não me senti na obrigação de fazer qualquer tipo de condescendência e se consegui ser fiel ao texto, então ele pode ser lido com facilidade por pré-adolescentes alfabetizados, que já leram alguma coisa”, diz Krausz, que acaba de traduzir A Metamorfose e Outros Narrativas, do checo, para a FTD Educação. A obra traz os textos na íntegra, sem nenhuma adaptação, e ainda um almanaque com informações sobre o autor e a obra, curiosidades, contexto histórico, outros escritores e personalidades da época e uma cronologia do autor – além, claro, um suplemento de leitura com 9 perguntas. Um livro para ser lido na escola, mas não só.

Krausz não conta isso no texto de apresentação do livro, mas seu primeiro contato com A Metamorfose foi aos 15, quando fez uma viagem para Israel com um grupo de adolescentes para conhecer um kibutz – tema de seu premiado romance Deserto. “Não me pergunte por que, mas levei uma edição da minha mãe em francês e ia lendo nas horas vagas. Tudo naquela viagem foi assustador: da experiência agrária à leitura de Kafka. Foi uma leitura desestabilizadora”, conta hoje, aos 59 anos.

Quem cresce numa casa de leitores, como Luis Krausz, mais cedo ou mais tarde vai ser desafiado por um livro na estante. Aconteceu com ele, e aconteceu com Sofia Fecchio, de 13 anos. Sempre que passa, ele está lá, chamando… “É um livro com vários contos de mistério de Edgar Alla Poe (1809-1849). Olho para ele quase todos os dias. Já tentei ler, mas ainda acho um pouco difícil”, conta a garota que tem uma lista dos próximos livros que quer ler – e ela vai das sagas contemporâneas de Harry Potter e Percy Jackson a tudo o que Agatha Christie (1890-1976) escreveu.

A rainha do crime, aliás, é sua paixão atual. Começou por E Não Sobrou Nenhum e Os Elefantes Não Esquecem. Com o dinheiro que ganhou dos avós no Dia das Crianças, comprou um Kindle e espera economizar comprando e-books para poder comprar mais e mais títulos.

Sofia sempre leu muito e conta que já acorda com vontade de ler. Só uma coisa a afastou da leitura em um determinado momento de sua história: a escola. Foi no sexto ano, quando ela mudou para um colégio mais exigente. “Precisei me concentrar mais nos estudos, parei de ler e perdi esse costume. Mas é uma coisa que eu amo fazer e estou voltando agora”, diz. E por que ler? “Ler é muito importante, aumenta o vocabulário, te deixa mais culto e dá prazer”, conta a garota às vésperas de ingressar no 9.º ano, que ama suspense e mistério e que já se arrisca a escrever algumas histórias.

Alice Guimarães, 12 anos, também ama ler, e credita isso à influência dos pais e da escola. Ela acaba de terminar o 6.º ano e começou recentemente a ler A Ilíada. A sugestão foi dada pela mãe, já que Alice, que tinha lido muito na quarentena, estava sem palpite. No caso, ela está lendo a adaptação de Ruth Rocha – e já tem a Odisseia separado para ler.

Segundo a pesquisa Retratos da Leitura, o brasileiro lê em média 4,95 livros por ano – desses, apenas 2,55 por inteiro. Só nas férias de julho, Alice leu pelo menos 10. Encarou, desta vez sozinha, todo o Harry Potter que já tinha lido com a mãe. Leu livros da série Percy Jackson, de Rick Riordan (1964), O Hobbit, de J. R. R. Tolkien (1892-1973), As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis (1898-1963), e “outros mais de criança”. Tolkien segue no radar de Alice, que já tem o Cartas do Papai Noel e quer muito ler O Senhor dos Anéis. “Com um livro, você consegue viver uma aventura sem sair no lugar. Você descobre personagens, lugares. É muito legal.”

Sofia é aluna de Luana Chnaiderman de Almeida no Equipe. Luana é escritora também, e vem de uma casa repleta de histórias. O acesso à biblioteca era livre, e sempre a fascinou o título de um livro da coleção de sua mãe psicanalista: O Mínimo Eu. “Eu passava horas pensando o que era aquilo”, relembra – e ri. “E é bom apostar no mistério daquilo que não entendemos tanto, e não precisamos entender tudo, não precisamos dar conta de tudo”, completa a professora de 6.º e 7.º anos.

Com o pai, Luana aprendeu que podia pular partes dos livros – e com esse aval libertador leu Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, passando reto pelas “partes mais filosóficas” porque ela queria saber como a história acabava. Também com o pai, antropólogo, aprendeu, quando lia Cem Anos de Solidão aos 15, a fazer uma árvore genealógica – isso a ajudaria também, ela ouviu dele, a entender melhor os romances russos. E valia anotar no próprio livro, sem pudor. Outra lição: aguente as primeiras 30 páginas de Grande Sertão: Veredas que a porta do livro se abre. “Depois que entrei, a história virou um grande bangue-bangue. Eu o li como uma grande história de aventura”, conta.

Hoje, é ela quem ajuda a meninada a descobrir histórias e novos jeitos de ler. Uma de suas abordagens é conversar sobre os personagens como se estivessem falando dos amigos, meio que fofocando mesmo. E eles gostam. Mas não é só isso.

“Temos que acreditar na força do livro, contar (para os alunos ou filhos) por que achamos que ele é legal. Uma boa história é algo muito raro e precioso e nos faz muito bem. Os livros foram me indicando um caminho, um lugar, uma história de se viver. Temos que trazer a literatura para o chão, para a vida”, comenta E as crianças querem conversar sobre a vida e seus grandes temas, querem discutir, querem ser desafiadas. Entre os alunos de Luana, um livro que faz tanto ou mais sucesso quanto os da série envolvendo Percy Jackson é Os Meninos da Rua Paulo, clássico de 1907 do húngaro Ferenc Molnár. “Tem honra, valentia, código de ética em jogo, morte. As crianças gostam de discutir metáforas, símbolos e fazer roda de discussão sobre o significado de alguma coisa.” Uma vez, ela lembra, sugeriu que alunos do Ensino Médio lessem contos de Chekhov, traduzidos pelo seu avô Boris Schnaiderman, o grande responsável pela disseminação da literatura russa no Brasil, e da experiência nasceu um grupo de leitura para ler Crime e Castigo e alguns alunos não pararam mais de ler os russos. Isso sem contar, comenta, que eles ficam muito orgulhosos de se perceberem capazes de ler livros que seus pais leem.

E por que não, às vezes, ler junto? Isabel Lopes Coelho, publisher da FTD Educação e autora de A Representação da Criança na Literatura Infantojuvenil: Rémi, Pinóquio e Peter Pan (Perspectiva), acredita no poder de uma obra literária como instrumento de comunicação entre as famílias. Ao ler junto, conversar sobre aquilo, a família participa do processo de educação literária da criança ou jovem. “E isso abre portas de assuntos que as crianças têm alguma barreira para conversar”, explica. Outra dica da editora é não subestimar os filhos. “Os pais conhecem melhor do que ninguém seus filhos, mas é preciso ter um pouco de pouco de coragem de entender que existe uma construção do ser humano a partir da leitura.”

Essa edição de A Metamorfose integra uma coleção de clássicos da FTD que, na opinião de Isabel, propicia uma iniciação literária nesse universo da fruição da leitura. São livros para leitores que estão iniciando “sua biblioteca de vida” – obras que serão lidas ali entre o fim da infância e a adolescência, e para o resto da vida.

Por Maria Fernanda Rodrigues
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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