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Eury Donavio cria sertanismo mágico para narrar saga de matador

O matador veio antes de tudo. Mau, sem dúvida, mas longe do homem que se tornaria: uma alma atormentada e disposta a cobrar no ferro quente todas as dívidas e atentados contra sua macheza anotadas em uma caderneta. Era antes um assassino mais urbano, noir e talvez menos ingênuo, inspirado na série de histórias em quadrinhos Sin City, de Frank Miller, mas que nem chegou a existir. Aos poucos, nas mãos de seu criador, ele se sertanejava nos aperreios da cachaça, no ódio fervido ao sol e no palavrório forjado pela sobrevivência. Sob as bênçãos do regionalismo de Ariano Suassuna, depois do grande pai de todas as linhas sertanejas, Graciliano Ramos, passou a existir e a inspirar todo um mundo a seu redor.

Ao criar seu personagem central dentro de um novo eixo, o autor Eury Donavio passou a ampliar seu universo e a usar todo o sertanismo mágico – e talvez essa definição seja um pleonasmo a quem quer que tenha qualquer cantinho de sertão dentro de si – para libertar os seres deste e do outro mundo e compor com eles a incrível história de Fiados na Esquina do Céu com o Inferno.

Vamos a ela: o sertanejo brabo, narrador de tudo, segue pela terra seca em busca daqueles que o enganaram um dia, incluindo padres molestadores da mulher alheia, colegas caguetas de suas molestações da mulher alheia e até um burro que insistia em rir de suas angústias. Ciente de que o inferno o espera, mas temeroso por ele que só um nordestino, encontra em uma bodega, a tal esquina do céu com o inferno, um ser do além que o desafia. Ainda há um jeito para que ele se livre das garras do tinhoso. Basta que tome parte da chuva na guerra que ela trava com a seca em outra dimensão.

Uma jornada de herói com resfolegos instigantes poderia ser a perdição para um escritor de primeira obra como Eury Donavio se o seu livro não fosse tão bem resolvido. Aos 49 anos, esse homem de Floresta do Navio, no sertão pernambucano, atuou com muita pesquisa e memória afetiva. Apropriou-se da linguagem regionalista com destreza – e o fato de ser o autor um sertanejo nem sempre facilita algo do qual os temores diante da suntuosidade de um texto poderiam fazê-lo se distanciar -, desamarrou seus personagens de um roteiro pré-fabricado deixando-os por vezes ganharem vida e o conduzirem por novos caminhos e conseguiu, sabiamente, manter o humor. Ou algo que chamamos aqui embaixo de humor mas que nos grandes sertões são apenas o jeito de se viver. Ao colocar ponto final depois de nove anos de burilações nas esquinas do céu das ficções com o inferno das profundidades de seus personagens para torná-los reais, Eury tinha uma obra sólida e digna de ser descoberta.

E ela tem sido. Seu livro já recebeu Menção Honrosa no Concurso Internacional da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro e o Prêmio Literário Cidade de Manaus. Mais recentemente, há três dias, soube que seu livro havia sido um dos 15 selecionados do Concurso Novos Roteiros Originais – Edição Brasil realizado pela Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI). São R$ 15 mil de prêmio para que tenha seu roteiro adaptado para o formato série televisiva. E, então, que venham as plataformas a abraçá-lo para transformar Fiados em capítulos e exibi-lo para públicos maiores.

Parte de Eury é resultado de esforço e aperfeiçoamento. Depois de conseguir ter o personagem central fortalecido, ele se sentava para escrever sem saber bem para onde seguir. Ao sentir as ideias vagando perigosamente, doidas para se perderem, resolveu parar de escrever para fazer duas oficinas literárias com o professor de escrita criativa Tiago Novaes e seguir os passos do que aprendia, organizando a estrutura da história e desenvolvendo seu argumento. Quando voltou ao texto, percebeu a fluência e a produção ganharem corpo. “Meu texto é feito de muitas revisões. Fico lendo e relendo até que tudo soe bem aos ouvidos”. Depois de sentir o texto pronto, ou quase, procurou a escritora, editora e preparadora de textos Anita Deak, autora do também recente e fascinante No Fundo do Oceano, os Animais Invisíveis, e contratou sua leitura crítica. “Anita foi fundamental e me ensinou demais. É a minha fada-madrinha literária.”

Engenheiro civil por formação e mestre em ciências da computação, Eury não faz pose de intelectual. “Nunca fui um devorador de livros. Sempre li minhas dez obras por ano.” “Eu tive que aprender a escrever, por isso fiz as oficinas.” “Sou mais ligado ao cinema.” Ótimo “personagista” (não é assim que ele faz quando de depara com algo que a língua portuguesa se esqueceu de nomear?), Eury só não parece disposto a criar um personagem de si mesmo. “Você é o primeiro jornalista que fala comigo.” Que venham todos os outros.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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