Filme sendo exibido na sessão de abertura do FCTP em NOV2028 - Fotografia de Mixi de Quadros

Cine Globo de Três Passos: O início de uma estória de amor ao cinema

por Christian J. A. F. Alves da Silva
Mestre em Cinema e Audiovisual pelo PPGCine/UFF

Quem visita a acolhedora Três Passos, situada a 472 quilômetros de Porto Alegre, seja a trabalho ou a passeio, invariavelmente irá receber um convite para conhecer o cinema da cidade. Localizado na avenida principal, o edifício do Cine Teatro Globo é motivo de orgulho para os moradores e templo sagrado para cinéfilos e cinemeiros de todo o país. Com a criação do Festival de Cinema de Três Passos (FCTP), em 2014, a sala da família Levy deixa de ser uma atração local para encantar cineastas, produtores audiovisuais e até de acadêmicos, fascinados com a longevidade do cinema construído na década de 1950 (ALVES DA SILVA, 2022). Tema de uma dissertação de mestrado, no Rio de Janeiro, que irá virar livro em breve, e de um longa-metragem, com lançamento previsto para o início de 2024, o Cine Globo completa 68 anos, de portas abertas e com exibição Digital 2D e 3D.

Essa fascinação não é sem motivos. Segundo dados de 2021, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), o Cine Globo está instalado num dos 152 municípios brasileiros, entre 20.001 a 100 mil habitantes, de um total de 1.474, que possuem ao menos uma sala de exibição. Considerando a faixa de análise até 20 mil habitantes, um recorte populacional mais próximo à realidade de Três Passos (que tem cerca de 24 mil habitantes), e que compreende 3.770 municípios, observamos que apenas quatro deles possuem cinema, ou seja, 0,1% do total. Atualmente, o Cine Teatro Globo é a sede da rede Cine Globo Cinemas que opera outras quatro salas no interior gaúcho, todas geridas pela família Levy, incluindo Santa Rosa, Palmeira das Missões, Frederico Westphalen e Cruz Alta.

Mas toda essa estória começa bem antes, já que a relação de Três Passos com a Sétima Arte remonta ao tempo dos exibidores itinerantes, que percorriam a região de Palmeira das Missões, ainda na década de 1930, com projeções de películas em 16 mm, nos salões de baile, nas igrejas e nas quadras das escolas. A inauguração do cinema fixo na cidade tem a data estimada para o ano de 1945, quando o empresário Júlio Bertin instala o Cine Globo num casarão alugado e adaptado para projeção de filmes em 35 mm. Nessa época, Bertin tinha prejuízo com o cancelamento das sessões por problemas de queda da energia elétrica, fornecida pela prefeitura de forma intermitente (GRAFFITTI, 2004). A solução encontrada foi firmar sociedade com o comerciante Alberto Abraão Levy, em troca da instalação de geradores no casarão, garantindo uma programação constante e permitindo a formação de uma plateia fiel.

A falta de uma documentação impressa e de registro em cartório, torna difícil estabelecer de forma precisa quando começa ou quanto tempo dura a sociedade. Mas com a ida da família Bertin para Três de Maio, Alberto assume o negócio em fins da década de 1940. Em 1953, começa a planejar a construção do edifício para abrigar definitivamente o cinema da cidade, já que teria que desocupar o casarão alugado a pedidos do proprietário que tinha outros planos para o imóvel. Inaugurado em 1955, em terreno adquirido para essa finalidade, o Cine Globo atravessa as décadas, enfrenta mudanças tecnológicas e sociais para chegar à terceira geração da família Levy.

Roberto Levy em frente ao Cine Globo | Foto Carlos Roberto Grün

Três gerações e um desafio: manter o cinema aberto
Na época em que Roberto Levy assume os negócios do pai, Alberto Abraão, no início dos anos 1970, o edifício do Cine Globo já tinha passado por diversas reformas para continuar atraindo e agradando ao público, incluindo a troca de parte das cadeiras de madeira por poltronas estofadas. Em 1963, Alberto investe na modernização da sala ao adquirir dois projetores Bauer 35 mm com jogo de lentes anamórficas, panorâmicas e de Cinemascope, e instala um novo sistema de som e um gongo elétrico com três tonalidades. Os equipamentos são importados e um técnico de Porto Alegre é contratado para a montagem e manutenção.

Em quase sete décadas, o Cine Globo foi testemunha do surgimento de diversas tecnologias que deveriam manter o público sentado no sofá de casa e afastado de suas poltronas. Ameaças não faltaram: televisão em preto e branco, depois a cores, videocassete, DVD, TV por assinatura via satélite, Blu-Ray e a recente era do streaming e da internet, dentro da chamada “Revolução Digital” que seria a responsável pelo fim do cinema como conhecemos (GAUDREAULT; MARION, 2016). Só que ao contrário do que era defendido por especialistas, na primeira década do século XXI, a introdução do sistema Digital foi fundamental para a continuidade do cinema e não para o seu fim.

A entrada das novas tecnologias, como a internet, permite que a gestão dos Levy ganhe eficiência. A criação de uma rede pelo interior gaúcho foi impulsionada pela chegada do Digital que barateou e facilitou o acesso aos filmes. Hoje, com cinco salas em cinco cidades de perfil socioeconômico heterogêneo, Levy Filho, da terceira geração e neto de Alberto Abraão, consegue manter as contas da rede no azul, mesmo que uma filial apresente prejuízo durante alguns períodos do ano. Estratégia anteriormente adotada pelo pai, Roberto, entre as décadas de 1970 e 1990, quando operou quatro salas em cidades próximas a Três Passos, incluindo duas em Santa Rosa, o Cine Odeon, no centro, e o Cine Sideral, no bairro do Cruzeiro.

Com mais de quarenta anos de experiência acumulada na gestão de cinemas pelo interior do Brasil, Roberto conhecia as dificuldades de negociação com as empresas distribuidoras e foi um entusiasta do processo de digitalização adotado pela indústria cinematográfica, na década de 2010. As comparações entre o 35 mm e o Digital vão além da qualidade de imagem. Se os moradores das cidades da Rede Cine Globo, puderam assistir a praticamente todos os indicados ao Oscar 2023, antes da premiação hollywoodiana acontecer, na época da película dificilmente isso seria possível. Um lançamento podia demorar meses para chegar até a tela do Cine Globo.

Ao percorrer o circuito comercial, um filme começava nas capitais, em cinemas chamados de lançadores, em seguida rumava para as salas de bairro, mais afastadas da região central da cidade, para só depois iniciar a peregrinação pelo interior do estado.

Como as cópias em película eram caras, nem todos os filmes chegavam ao Brasil com a quantidade necessária para atender rapidamente a demanda. Se um título fizesse sucesso repentino, esse atraso poderia ser ainda maior e o exibidor aguardaria com ansiedade a liberação das latas vindas da capital. Com a entrada do VHS e, posteriormente, do DVD, esse problema ficou difícil de ser contornado. Mesmo sem contar com a pirataria, Roberto recorda de receber as latas de um filme quase ao mesmo tempo em que as caixas com os DVDs aportavam nas videolocadoras, inclusive na que funcionava estrategicamente em frente ao cinema. Hoje, a locadora fechou e os HDs contendo a versão digitalizada dos filmes são despachados ao mesmo tempo tanto para capitais quanto para o interior. O cinema dos Levy, na pequena Três Passos, exibe um sucesso de Hollywood, na estreia, como qualquer sala do circuito comercial mundial.

Atualmente, o Cine Globo funciona praticamente o dia inteiro e de segunda a segunda, sendo raro encontrar a sala com as portas fechadas. Desde 2015, com a entrada do Digital, Levy Filho busca ofertar ao público uma variedade de títulos distribuídos em quatro sessões, de domingo a quinta-feira, às 14h, 16h, 18h e 21h. Dependendo do lançamento da semana, o empresário abre sessão-extra na sexta e no sábado, para o horário das 23h. O quadro de funcionários conta com um gerente e quatro atendentes que são responsáveis pela operação da sala.

Só que a tecnologia não impacta somente na qualidade da exibição ou na logística responsável por permitir uma maior variedade de títulos disponíveis para os frequentadores. Como o Cine Globo é a única opção num raio de oitenta quilômetros e que concentra até 21 municípios, algumas pessoas dirigem mais de uma hora para chegar até o cinema e não foram poucas as ocasiões em que encontraram a sessão lotada. Para contornar o problema e evitar a frustração do público, Levy Filho investiu, em 2019, num aplicativo online e agora consegue ter com antecedência uma parcial dos ingressos vendidos para cada sessão. Tudo para permitir a melhor experiência possível aos clientes e formar uma plateia fiel, exatamente como Júlio Bertin e Alberto Abraão, na década de 1940.

Entrevista com Roberto Levy no Cine Globo (2015) | Foto: Carlos Roberto Grün

Um projeto contínuo de formação de plateia
Desde a consolidação do FCTP, que o Cine Globo é casa de diversas ações promovidas pelos entes culturais do município. O Cine Rock, realizado pela primeira vez em 2015, sempre no meio do ano, é responsável por atrair os roqueiros da região, um público que nem sempre lembrava que em Três Passos ainda tinha sala de cinema. Mas dentre todas as estratégias pensadas para aproximar a comunidade do Cine Globo, a mais exitosa é, sem dúvida, o projeto criado pelo cineasta gaúcho Henrique Lahude. Em 2016, Henrique idealiza o projeto #Cidade Cinematográfica que inclui um cineclube, cursos de formação audiovisual para docentes e discentes da rede pública municipal e estadual, além da oficina Mãos à obra, aberta a todos os interessados em saber como produzir um curta-metragem. A ideia é ocupar o espaço o ano todo e não somente durante a semana do festival local, tornando o Cine Globo um ponto de encontro para quem ama a cultura na cidade.

Como fruto dessas ações, a professora da rede municipal, Deca Maria Krügel, lança o projeto Aprendizagens em Movimento que visa estimular a produção audiovisual na escola em que trabalha e que já gerou mais de 70 curtas-metragens, exibidos a cada ano, em concorridas sessões dentro da programação do festival. Aliás, a sexta edição do FCTP está perto. Entre 7 e 11 de novembro, a tela do Cine Globo irá exibir 86 produções nacionais e 14 curtas feitos nas escolas da região, totalizando o número recorde de 100 filmes, em quatro dias de festival. Todos estão convidados.

Em novembro, Três Passos é a casa do cinema brasileiro.
Atento às transformações tecnológicas do parque exibidor nacional e sempre parceiro das estratégias realizadas em Três Passos, Levy Filho estuda levar essas ações para as demais filiais da rede. Em Frederico Westphalen, por exemplo, um festival de curtas está sendo planejado e a primeira edição tem previsão para acontecer em 2024. O que falta para Santa Rosa voltar a ter um festival de cinema com projeção nacional, se o Cine Globo já está na cidade? É hora dos cinéfilos locais se organizarem e mostrarem todo o seu amor pela Sétima Arte. Amor esse que não falta à família Levy em mais de setenta anos de tradição na gestão de salas pelo interior gaúcho. Mas essa é uma estória para outra conversa. Até novembro. Nos vemos em Três Passos.


Referências bibliográficas:
ALVES DA SILVA, Christian J. A. Ferreira. Cine Globo de Três Passos: uma história de resistência. Dissertação – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022.
GAUDREAULT, André. O fim do cinema? Uma mídia em crise na era digital / Andrè Gaudrealt, Philippe Marion; tradução Christian Pierre Kasper. – Campinas, SP Papirus. 2016. – (Coleção Campo Imagèbco/Coordenação Femão Pessoa Ramos).
GRAFFITTI, Luis Gustavo. Três Passos: colonização e imigração. Ijuí: (s/n). 2004.

Comments are closed.