Capa 5ª Edição

Alquimia do desenvolvimento

Nos últimos dias muito se falou da estiagem causando enormes estragos à agricultura no Estado, com significativa queda na produção. Mais de 80 municípios declararam situação de emergência em meio a reuniões entre a Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, FAMURS, FETAG, EMATER e FECOAGRO/RS, buscando a liberação de recursos da União.

Alinhando o escrito acima a alguns fatos e lembranças objetivas do passado, proponho aqui o resgate de algumas estratégias memoráveis da nossa história que permanecem válidas.

No enfrentamento de problemas tão sérios como esses durante os anos de 1950 e 1960, quando não havia o auxilio federal de recursos a nos socorrer e medidas urgentes tinham de ser ativadas, houve lideranças que se destacaram pelo arregimentar de forças no momento certo, o que foi determinante para o progresso coletivo.

Movidos pelo desenvolvimento econômico e social coletivo, e também pela lealdade às entidades e alianças que representavam, com suas ações contribuíram na criação de novas realidades, portando-se como agentes das transformações a partir das relações sociais que construíram em torno de si. Com isso fizeram com que uma maior riqueza fosse compartilhada, de forma sustentável no tempo, o que lhes trouxe credibilidade e respeito.

Hoje, olhando em retrospecto, vemos que aquelas que parecem pequenas decisões se revelaram passos decisivos, razão pela qual os chamo de alquimistas. Ativando foco e vontade, e acrescendo recursos, habilidades e novas tecnologias, uma ação lapidou a outra, “o ferro afiou o ferro”, como diriam alguns.

Aqui, fazendo essa retrospecção de uma estratégia para outra, penso alquimia como a busca para criar um esforço de transformação. Usando o que se tinha, com foco, vontade e recursos buscaram criar o que deveria ser. Uma constante recriação e reestruturação do nosso espaço, assinalando novas tarefas e desafios, com base em uma força sedimentada no comprometimento e na confiança.

Trago o assunto à tona motivado pela descoberta, inesperada, de uma ata de sessão ordinária da então Associação Comercial de Santa Rosa, documento registrado sob n° 85, e datado de 29 de outubro do ano de 1952, e que, de certa forma, guarda alguma relação com os desafios hoje enfrentados pelos 80 municípios que decretaram situação de emergência devido aos prejuízos na agricultura.

Na hora em que o documento caiu em minhas mãos percebi que se tratava de material histórico importante, envolvendo empresas e pessoas conhecidas, cujo teor merece ser conhecido.

Todos sabem que o desenvolvimento econômico e social de nossa cidade passa pela produção agrícola. No caso, os fatos narrados naquela ata revelam um momento crítico e decisivo que distingue, alinhado a alguns outros, uma seqüência fundamental de estratégias adotadas com acerto, ao longo de décadas, por lideranças empresariais que souberam informar, inspirar, levar a comunidade à auto organizar-se de modo a que as coisas acontecessem naturalmente.

Na ata registrada sob n° 85, de 29/10/1952, lemos o seguinte: “considerando a alarmante diminuição que se está observando na produção agrícola deste Município e com o intuito desta Associação colaborar no sentido de aumentar as possibilidades da nossa Agricultura, resolveram os associados presentes estudarem uma modalidade de trazer sementes de outras zonas do País, que apresentem melhores condições técnicas, isto é, capacidade germinativa, possibilidade de carregamento, resistência aos elementos, etc, (…).”

Em se tratando de um problema que afligia toda região, com enorme risco de prejuízo coletivo, lemos que na reunião estabeleceu-se a criação de um Fundo Inicial para a compra das sementes, constituído de um adiantamento feito por cada empresa exportadora de cereais do município, constituído de vinte centavos de cruzeiro por saco de cereal carregado nas estações férreas de Santa Rosa e esquina Cruzeiro, e que seriam devolvidos de acordo com as exportações de cada uma. Ainda, estabeleceu-se que o controle das contribuições far-se-ia mediante a segunda via que seria extraída na estação férrea do embarque do cereal exportado e que, para melhor organização, constituía-se uma comissão, integrada por elementos da diretoria e representantes do comércio atacadista, para servir como auxiliar da diretoria, subordinados ao presidente da associação. Esta comissão ficaria encarregada da aquisição das sementes, sendo que o comerciante do interior do Município interessado na compra das mesmas retiraria uma ordem de entrega na associação comercial e receberia o produto numa das empresas depositárias. Importa dizer que pela segunda via da ordem de entrega far-se-ia a descarga respectiva nos livros de estoque.

Hoje, de sua leitura, vemos que imbuída de um espírito de liderança o documento informava sobre uma alteração da realidade e esclarecia o que se tinha a ganhar adotando-se a nova estratégia; ainda, ao mesmo tempo em que fazia perceber que o modelo de plantio até então adotado não funcionava mais, reajustava o modo de pensar e permitia que os comerciantes e produtores envolvidos estabelecessem suas próprias metas. Naquele momento as lideranças da associação comercial deram a informação e a inspiração para que a mudança ocorresse.

Já na ata registrada sob n° 86, datada de 06/11/1952, lemos que rapidamente ocorre nova reunião entre os membros da diretoria da associação comercial e os representantes das firmas atacadistas locais, para resolver, de forma definitiva, sobre a distribuição das sementes discutida na reunião anterior. Nesse encontro verificou-se que a empresa Floresta S/A. esperava um carregamento de sementes de feijão preto procedente de Minas Gerais, ficando decidido que cada exportador interessado em fazer a distribuição das sementes entre seus fregueses, adquiriria da empresa Floresta S/A. a quantidade de sacos que lhe caberia em distribuição previamente combinada. Ainda, na mesma reunião, alterando-se o que havia sido definido na reunião anterior, definiu-se que esta primeira distribuição seria feita, exclusivamente, a critério dos interessados, ficando a associação comercial completamente alheia a distribuição. Na ocasião foi criado o Fundo Comum, que vigoraria por tempo indeterminado, definindo-se que, oportunamente, os exportadores locais e da Vila Cruzeiro adiantariam uma determinada importância, ainda não estipulada, para a aquisição de outras sementes cuja distribuição interessasse aos exportadores.

Naquela segunda reunião o foco foi gerar um senso de propósito nos envolvidos. Ainda, ao decidir ficar alheia à distribuição das sementes, adotou o princípio da liberdade econômica, permitindo que os envolvidos definissem a estratégia que melhor atendesse às suas necessidades. Naquele momento as lideranças da associação comercial deram a inspiração para que a mudança ocorresse por conta própria.

Esses fatos revelam o esforço e o comprometimento da Associação Comercial e seus dirigentes na busca de soluções que rapidamente resolvessem o grave problema. Sobre os resultados alcançados, lemos na registrada sob n° 110, de 10/10/1954: “(…) Em seguida, com grande satisfação, o senhor Presidente levou ao conhecimento da Assembléia o nobre gesto dos Cerealistas exportadores de Santa Rosa e Cruzeiro, que generosamente doaram a esta Associação a importância aproximada de Cr$ 45.000,00. Por tão leal gesto de cooperação, pediu o senhor Presidente fosse lavrado em ata um voto de louvor às firmas doadoras, que são as seguintes: Sociedade Comercial Ortmann Ltda., Floresta S/A., Cereais Santa Rosa, Ltda., Irmãos Mayer Ltda., Germano Dockhorn S/A., e R. Arno Mundstock, voto este que foi por todos os presentes aprovado.”

Do rigor do texto não se pode afirmar com precisão que a doação acima citada constitua o fundo comum para aquisição de sementes criado em 1952, que passou a vigorar por tempo indeterminado. Mas levando-se em conta que naquele ano se definiu que a primeira distribuição das mesmas seria feita, exclusivamente, a critério dos interessados, ficando a associação comercial completamente alheia a distribuição, e que a adoção do fundo passou a vigorar por tempo indeterminado, normal supor que o valor de Cr$ 45.000.00 é proveniente da estratégia adotada. Lembremos ainda que na ata n° 86 definiu-se que, oportunamente, os exportadores locais e da Vila Cruzeiro adiantariam uma determinada importância, não estipulada, para a aquisição de outras sementes cuja distribuição interessasse aos exportadores. A doação do valor evidencia o acerto estratégico.

É preciso lembrar que em se tratando de diminuição na produção provocada pelo esgotamento dos solos – para o qual, à época, não se conheciam medidas técnicas corretivas -, não havia previsão legal de recursos financeiros governamentais que pudessem vir em socorro aos agricultores. Coube à associação agir rapidamente para resolver o problema, evitando-se maiores e irreversíveis prejuízos.

Ao mencionar um alinhamento fundamental de estratégias adotadas com acerto ao longo de várias décadas, é preciso pontuar aqui o primeiro alquimista, Vergílio Lunardi, que já em 12/11/1936, na condição de vice-presidente da Associação Comercial, apresentou perante a Câmara de Vereadores da cidade proposta acerca da construção de novo trecho da estrada de ferro ligando a estação da esquina Cruzeiro (inaugurada em 1937) a Santa Rosa (inaugurada em 1940). Esse fato está registrado em ata do acervo histórico da Câmara de Vereadores.

É preciso lembrar que a partir da década de 1930 ocorre um aumento da produção agrícola na região, constituída de milho, feijão, mandioca e intensificando-se, da soja. Também aumentavam os negócios envolvendo o comércio de madeira e suínos. Novas empresas atacadistas de grão se instalam na cidade. Essa rápida ampliação insufla as lideranças e potencializa o comércio com outras regiões. Conforme nos conta a historiadora Teresa Christensen, já em 1938 uma empresa cerealista atuante na região, a Ortmann & CIA., exportou três mil sacas de soja em grão para a Alemanha, valendo-se da recente instalação da viação férrea em Cruzeiro.

Esse protagonismo de resultados, de vagões e mais vagões saindo daqui lotados de grãos é comprovado na matéria publicada no jornal “A Serra” em 29/03/1942, onde se lê: “SANTA ROSA – CENTRO COMERCIAL – De grande, mas simples produtor, Santa Rosa vai se tornando, aos poucos, centro exportador e comercial de largas possibilidades. Éramos, até poucos anos atraz, os abastecedores, em grande escala, de todos os produtos agrícolas das praças de Giruá, Santo Ângelo e Ijuí, de onde eram os mesmos exportados para os centros maiores, que propiciavam aos intermediários uma apreciável soma de lucros. Graças à Estrada de Ferro e à conservação de boas estradas, de par com a instalação aqui de firmas com recursos poderosos, que estabeleceram preços vantajosos para todos os produtos coloniais, pode-se hoje assinalar que Santa Rosa, ao contrário de sua situação anterior, transformou-se num centro de convergência e de escoamento da produção agrícola desta região, havendo conquistado novos núcleos produtores (…). Constata-se assim uma inversão de situações: Santa Rosa, hoje, não é mais um simples centro produtor, mas o grande celeiro das Missões, que tornando-se ponto de convergência e de escoamento dos produtos de uma região riquíssima, exporta diretamente para os grandes centros comerciais, colocando-se em situação de invejável destaque entre as demais comunas riograndenses .O nosso município avança, pois, a passos largos na senda do progresso, preparando o terreno para o seu futuro promissor e premiando de maneira exuberante e sábia, o trabalho árduo e incessante de seus filhos laboriosos. Oxalá, que sempre seja assim.”

Folheando outros exemplares do jornal “A Serra” do ano de 1942, em meio a notícias do bombardeio de Tóquio pelos americanos e do afundamento de navios na costa brasileira por submarinos alemães, encontramos uma pequena nota informando que aqui em Santa Rosa a filial de uma instituição financeira planejava uma campanha de arrecadação de valores entre a comunidade para a compra de um avião que ficasse permanentemente no então “campo de aviação”, propiciando maior rapidez na realização de negócios com outras regiões, superando dificuldades das estradas e das distâncias.

Esse velho “notíciário” ainda ecoa o entusiasmo experimentado pela comunidade ao tornar-se um “centro exportador e comercial de largas possibilidades”, que possibilitava um futuro melhor e mais rico, enquanto da Europa imersa na Segunda Guerra Mundial chegavam notícias de destruição e fome roubando a esperança de milhões de pessoas.

É em meio a essa seqüência de fatos e estratégias que vamos encontrar Vergílio Lunardi, que com sua liderança, inteligência, confiança, e ousadia, juntamente com seu círculo de relacionamentos, desempenhou papel relevante no desenvolvimento econômico e social da nossa cidade no avançar das décadas de 1930, 1940 e 1950. Documentos constantes do acervo histórico da ACISAP hoje nos informam ser ele o homem com maior número de participações na direção da entidade, ocupando alternadamente a presidência e a vice-presidência. Participou da primeira diretoria por ocasião da fundação da entidade em 1931, foi presidente na gestão 1934/1935, vice-presidente nas gestões de João Macluff de 1936 a 1945. Ainda, foi presidente nas gestões de 1946 a 1949, vice-presidente na gestão de 1950, presidente na gestão de 1951 a 1952 e vice-presidente nas gestões de 1953 e 1954.

O rápido crescimento da produção agrícola até os primeiros anos da década de 1950, quando começam a surgir os sinais do esgotamento dos solos, dá início a uma nova etapa de reestruturação que se revelará fundamental no surgimento de novas tecnologias que impactarão a indústria e a economia locais nos anos seguintes.

Novamente aqui se revela o alinhamento cronológico de fatos que se revelará fundamental para a entrada em cena de outros alquimistas, jovens empreendedores que a partir da segunda metade da década de 1950, passando pelas décadas de 1960 e 1970, irão se revelar imprescindíveis para que a soja se desenvolva cada vez mais na região, multiplicando recursos e riquezas. Com novos esforços de transformação, comprometimento e de conquista de confiança reativarão coletivamente foco, vontade e recursos, tornando-se os principais responsáveis pelo seu cultivo em escala no restante do país, tornando-a o item mais valioso das exportações nacionais.

Eles são Sheun Ming Ling, um estrangeiro entusiasta que com seu trabalho, esforço e um jeep a partir de 1953 transformará uma pequena refinaria de óleo vegetal de Santa Rosa, a lGOL – Indústria Gaúcha de óleos Vegetais Ltda. num dos maiores empreendimentos do Rio Grande do Sul, partindo da conquista da confiança de um grande número de produtores que tinham nele e na sua empresa a certeza de, com a soja, estarem investindo num excelente negócio; e Pedro Carpenedo, empresário responsável pela criação e pelo sucesso da famosa “Operação Tatu”, processo de correção de solos adotado primeiramente aqui e depois em escala nacional entre 1966 e 1969, e que a partir daí elevou os níveis de produtividade das lavouras de soja a nível nacional. Com inegável liderança, à frente da Associação Rural de Santa Rosa agregou Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade de Wisconsin (EUA), Banco Central, Banco do Brasil, Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID), Ministério da Agricultura, Banco Central, Banco do Brasil, ASCAR (atual EMATER). Também é preciso destacar a atuação de outro alquimista, o visionário Willy Klaus, liderança que em 1966, a frente de uma autarquia comunitária, pensou, estruturou e lançou a Fenasoja, hoje uma das feiras de maior sucesso no Brasil, motivo de orgulho para outras lideranças que o sucederam.

Falando do passado construído pelas ações desses homens terminamos reconhecendo a sua responsabilidade na criação de novas realidades, portando-se como agentes das transformações a partir das relações que construíram em torno de si.

Reconhecendo uma situação em que uma ação era necessária, agiram prontamente, cientes de sua responsabilidade coletiva. Fizeram com que o desenvolvimento coletivo acontecesse e que uma maior riqueza fosse compartilhada, de diversas formas. Para que fosse sustentável no tempo, sabiam que o importante era que o processo de crescimento econômico produzisse benefícios para toda a comunidade onde ele acontecia. Orientaram a transformação e canalizaram a potencialidade das pessoas.

Ousadia, coragem, vontade de crescer e desenvolver. Diria que além de terra dos pioneiros e do voluntariado, somos também terra de muita inspiração, ação e transformação. Foi esse espírito de iniciativa e enfrentamento que, somando atitudes às oportunidades que a região propiciava, pavimentou o desenvolvimento econômico sustentável do município. Aos que chegam e se propõem, de forma responsável, a dar continuidade a esse legado, inspirando boas idéias em prol da coletividade e do bem comum, coloca-se a tarefa de bem preparar-se para os desafios e transformações que se seguirão.

Mais uma vez nosso agradecimentos à Anete Guimarães, responsável pelo acervo histórico do Museu Municipal, bem como a Odaylsson Éder e Ana Maschio, Presidente e Secretária Executiva da ACISAP, que nos possibilitaram o acesso ao acervo histórico da ACISAP.

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